Romance Folhetim Virtual

domingo, 23 de agosto de 2009

A Morte de Leandro Soares - capítulo 1

Era uma noite como outra qualquer. Apenas mais uma noite de inverno. Eu estava em minha casa, no Jardim Botânico, esticado no sofá sob a penumbra produzida pela fraca luz do abajur. Ouvia na vitrola o sopro agudo de Charlie Parker – que naquela noite parecia estranhamente mais agudo do que o usual. Agudo a tal ponto, mas a tal ponto que, quando fui conferir o disco, percebi se tratar, na verdade, de Miles Davis.

Levantei, fui até a cozinha preparar um chá. A água já estava quente, e no fim de mais um dia daquele frio úmido que atinge os ossos, nada poderia ser melhor do que um chá de canela - sempre uma boa opção. Servi uma xícara e voltei para a sala, de luz fraca e tons amadeirados onde Miles Davis – que a pouco se fizera passar por Charlie Parker – ainda estava soprando, incansável. (Nada como uma agulha nova numa boa vitrola.)

Logo que fui deitar novamente, o telefone, mesmo estando desligado, tocou. Achei aquilo estranho, mas atendi mesmo assim. Era um homem de tom seco e voz rouca, que não se identificou e disse apenas:

- Você está sendo procurado.

O tipo desligou antes mesmo que eu pudesse perguntar qualquer coisa, me deixando com a pulga atrás da orelha. Sem pistas, peguei a minha automática, prendi no cinto e dirigi até o canal do Leblon. Por mais que eu não soubesse quem (ou o que) estava me procurando, ali seria possível descobrir algo a respeito.

Chegando lá estacionei o carro e logo me deparei com a figura. Como sempre: em seu casaco verde de capuz largo, de modo que se podia ver apenas uma sombra no lugar do rosto e a brasa daquele cigarro de palha vagabundo. Mesmo sem jamais ter visto seu rosto por completo eu poderia reconhecê-lo a milhas de distância farejando a fumaça daquele cigarro, repito, vagabundo. Como de praxe sentei-me no banco e ele ao meu lado. E com a mesma frieza de sempre:

- Você está sendo procurado.

- Conte-me algo de novo – respondi.

- Rua do Mercado 43.

Sabendo que meu “amigo” é um homem de poucas palavras, nem agradeci. Apenas deixei em cima do banco algumas notas amassadas com as quais ele pudesse comprar mais um maço daquele cigarro de quinta, e parti para o austero bairro do centro.

Toda a cidade estava bastante deserta àquela hora. Deviam estar todos em suas casas. No caminho eu invejava cada uma daquelas janelas de apartamentos quentinhos, onde provavelmente havia alguém deitado no sofá ouvindo jazz e tomando chá de canela.

Para chegar à rua do mercado fiz meu caminho secreto. O caminho que eu sempre usava quando ia ao centro da cidade de modo a estacionar o carro sem ser extorquido por um daqueles flanelinhas impertinentes. Embora, naquela noite, mesmo um flanelinha fosse uma figura difícil de ser encontrada. Se a cidade em si já estava vazia como nunca, o bairro do centro então, nem se fala. É impressionante como durante o dia milhares de pessoas circulam sem parar por todas aquelas ruas intrincadas e mal projetadas, enquanto que à noite não há viva alma que se preste a vagar por ali. Mas meu destino era certo.

- Rua do mercado 43 – repeti comigo em voz alta de modo a me sentir mais seguro e estar pronto para o que quer que fosse.

Qual não foi minha surpresa ao descobrir que a Rua do Mercado só ia até o número 41... Alguém estava brincando comigo. Meu amigo informante jamais me passaria uma informação errada, não era típico dele. A informação só podia ter sido distorcida antes de chegar a ele. Alguém estava agindo com a clara intenção de me dissuadir. Esse tipo de armação não tinha cara de ter sido preparada por um amador. Não. Mas quem? Eu estava ali para descobrir.

Estacionei o carro – não sem antes esquadrinhar toda a área ao redor e conferir se o pente da minha automática estava carregado. Voltei a guardá-la em minha cintura, abri a porta do carro com sutileza, mas não o tranquei. Eu ainda não sabia se seria preciso escapar dali às pressas. E nada pior do que uma chave que emperra na porta do carro na hora da fuga. Ainda mais no meu Opala 77, onde isso quase sempre acontece.

Parei em frente ao número 41, bem onde acabava o quarteirão. E nem foi preciso tentar decifrar o enigma. Logo ouvi os passos de alguém que se aproximava. Mas não esbocei nenhuma reação. Eram passos de mulher, para ser exato. De sapatos de salto alto, para ser mais preciso. De um scarpin Gucci preto, para ser cirúrgico. (Os Jimmy Choo sempre soam mais ocos, e não é tão fácil enganar alguém do meu ramo.)

Toda de preto ela apareceu.

- Por que os óculos escuros à noite – foi minha pergunta inevitável.

- Conjuntivite – foi a resposta à qual procedeu um longo silêncio – Estou brincando – e tirou os óculos em um gesto limpo e calculado. - Quero você fora dessa!

- Eu realmente não sei do que você está falando – respondi.

- Achei que você seria mais criativo, Leandro.

- Estou fora de circulação há tempos, imaginei que você soubesse.

- E o que é que Leandro Soares está fazendo no pedaço?

- Leandro Soares?

- Exato.

- Foi visto?

- Sim, não é preciso mais provas.

- Como pode ser – perguntei realmente intrigado.

- Também não sei. Só sei que é.

- Por todos os demônios, era só o que me faltava!

- Você precisa acabar com ele, Lelê.

- E por que é que você acha que eu vou ajudar vocês?

- Porque só você pode fazer o serviço. E se você não fizer, você sabe que logo virão atrás de você. No nosso métier a regra não pode ser outra.

- Está bem. Você me convenceu. Fale.

- Dentro deste envelope há mais informações e a chave de um apartamento. Vá para lá. A essa altura já devem ter cercado a sua casa. Todos sabem onde você mora.

- Mas não é fácil chegar lá. Você sabe como a Maria Angélica é confusa...

- Não para eles. Eles chegam facilmente aonde quiserem. Você os conhece.

- Então vejo que não nos resta alternativa...

- Não, Leandro. Não nos resta alternativa. E você sabe o que é preciso fazer.

- É o que eu imagino?

- Você terá de matar Leandro Soares.

Abaixei a cabeça para que ela se sentisse à vontade para sumir na noite. Ela o fez. E eu estava novamente sozinho. Um calafrio serpenteou pela minha espinha, e agora eu sabia que não havia mais volta. Eu teria que me matar, sem que eu morresse. Uma tarefa complicada, mas que seria preciso levar até o fim.


Continua...